O massacre ocorrido na penitenciária de Alcaçuz no dia 14 de janeiro, que deixou pelo menos 26 mortos, expôs falhas no sistema penitenciário, a dor da perda e questionamentos das famílias das vítimas. A Agência Brasil ouviu histórias de quem perdeu filhos, maridos, primos e amigos. Um dos dramas que os parentes enfrentam é enterrar os corpos degolados.
Cansada e desgastada, a dona de casa Eliene Pereira, 45 anos, de Santa Cruz, município a cerca de 120 km de Natal, enterrou o corpo do filho no dia 20 de janeiro. Ela precisou ir à capital potiguar por três dias seguidos para reconhecer Diego Felipe Pereira da Silva, 25 anos, e liberar o corpo no Instituto Técnico-Científico de Perícia (Itep). O jovem foi degolado durante a rebelião e recomendaram que a mãe aguardasse as buscas pela cabeça. Na sexta-feira, ela recebeu uma ligação comunicando a mudança.
“Eu fui, quando cheguei lá reconheci o corpo mesmo, porque tinha visto só por imagem. Levei na funerária, abriram o saco, aí conheci que era ele mesmo, meu menino. Sem a cabeça. Ela [a funcionária do ITEP] mandou trazer eu 'truxe' sem a cabeça. Fazer o quê?”, conta. “Era horrível o corpo do meu filho, fiquei muito comovida. Mas enquanto eu não visse eu não acreditava. Queria ver ele, ver as pernas, os braços. Mesmo que não tivesse a cabeça, mas eu queria ver a realidade”.
Por causa do estado avançado de decomposição, a funerária recomendou a Eliene que não realizasse o velório e enterrasse o corpo o quanto antes, sem despedida, à noite, sem a família e os amigos. Mesmo assim, a mãe levou o filho à sua casa pela úlitma vez. “Meu filho passou um ano fora. Está fazendo justamente hoje, um ano e um mês. Ia sair em março”, disse ela há uma semana. “Eles me deram o caixão vedado todinho e colocaram um produto. Até falaram 'não sei como a senhora vai aguentar passar a noite com ele dentro de casa'. Eu disse 'pode deixar, se ele tiver podre como for eu quero que ele passe a noite em casa'”.
No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã, Eliene levou o corpo de Diego ao cemitério. Rodeada de curiosos, Eliene pediu para ver o filho pela última vez antes de enterrar o corpo. Não havia mortalha, roupa, nada. O saco do necrotério encobria o corpo. “[O caixão] passou uns 5 minutos aberto. Comecei a endoidecer, puxando ele de dentro do saco. Aí pronto, fecharam e enterraram. É muito difícil enterrar um filho sem a cabeça."
Outras famílias ainda tinham esperança de que a cabeça fosse encontrada, e adiaram o enterro. A esposa do detento M.P.S.N., morto aos 22 anos, que preferiu manter o anonimato dela e do marido, também não viu o corpo, só imagens. “É uma decisão que tem de ser tomada por toda a família. Ele tem uma família que o amava muito, assim como eu também o amo muito. Eu não queria que fosse dessa maneira, mas acho que o sofrimento será maior se não sepultar”, disse a universitária.
Com a voz fraca, pausada, a estudante prefere falar do futuro com que o casal sonhou. Namorados desde a adolescência, ela tentava mostrar a M.P. que ele deveria deixar a delinquência. “Quando eu o conheci, voltei a estudar para incentivar. Comecei minha faculdade. Isso deixava ele muito feliz, era uma força que eu dava para ele, estudando e trabalhando, mostrando para ele que tem como você viver dignamente sem querer o que não é seu”.
O marido dela estava preso por dois crimes: o roubo de uma moto, com pena no semiaberto. Depois, ele foi preso novamente por subtrair um celular e migrou para o regime fechado. Há três anos estava preso em Alcaçuz, dos quais dois anos e cinco meses no Pavilhão 4 – onde ocorreu o massacre. Sairia no fim do ano, segundo a esposa. “Já estava tudo planejado pela gente, a família, para quando ele saísse. Perto da faculdade que eu faço tem uma escola de Ensino de Jovens e Adultos. A gente já tinha combinado que ele voltaria a estudar lá. Já tinha falado com amigos para conseguir um emprego para ele”, lembra.
Agora, a viúva diz que o próprio futuro está incerto. “Tudo o que eu planejava era para viver com ele. O concurso que eu pensava em passar fora do Rio Grande do Norte era para ir com ele. Não há mais para quê seguir esses planos. Minha cabeça está muito confusa”.
“Tenho que ter direitos”
Além da dor da perda, todos reclamam do que chamam de omissão do Estado, de uma possível facilitação do ataque e do julgamento da sociedade. Muitas famílias relatam que entre os mortos no presídio nem todos tinham ligação com a facção Sindicato do Crime do RN, que controla o Pavilhão 4 e é rival do Primeiro Comando da Capital (PCC).
“Nem todos que morreram eram integrantes dessa facção criminosa. Muitos só estavam ali cumprindo sua pena para sair e lutar contra todo esse sistema e tentar se recuperar. Porque a mídia [...]eu tinha escolhido não falar sobre isso, porque eles não divulgam o que a gente diz, só o que a sociedade quer ver. Porque, para todo mundo, quem morreu ali foram marginais, bandidos. Bandido bom é bandido morto. Mas desde que esse bandido não seja seu irmão, seu marido, seu primo”, disse a esposa de M.P.
A estudante também questiona as circunstâncias do ataque, porque desde novembro o marido havia contado que tinha medo. Para ela, as mortes poderiam ter sido evitadas. “Quando aconteceu o massacre em Manaus foi quando eu fiquei com mais medo e pedi para ele sair mesmo. Ele dizia 'mas amor, eu não sou de nada disso'. 'Mas quando eles vierem não vão perguntar quem é e quem não é', disse para ele. "Aí ele falou que ia pensar. Quando pediu [a transferência] não era mais autorizado ninguém sair”. A viúva disse que a conversa foi no dia 8 de março.
A dona de casa Eliene também questiona por que o filho foi transferido para Alcaçuz. Diego foi preso pelo furto de uma bolsa. Cumpriu um ano na cadeia de Santa Cruz até ganhar o direito do semiaberto. Ele passou três noites dormindo no centro de detenção; na quarta, anunciou que ficaria em casa para, segundo a mãe, ficar perto da família. “Eu insistia, mas ele é meio teimoso. Quando foi um mês vieram pegar ele. Aí colocaram ele logo num canto daquele, perigoso, Alcaçuz. Porque eu acho assim, meu filho nunca vendeu droga, nunca matou gente, era um menino do semiaberto. Só porque não foi dormir botaram junto de uma facção daquela. Meu filho não tinha nenhuma facção. Meu filho era usuário [de droga], somente. Eu achei muito errado, muito”.
Diego também avisava para a mãe há meses que a situação estava tensa e havia ameaça de invasão do prédio por membros do PCC. “Ele estava dizendo que estava muito perigoso: 'peça para mim voltar pro [pavilhão] 2'. Ele estava lá e botaram pro 4. Eu disse: 'termina aí tua cadeia nesse pavilhão'. Ele disse: 'mãe, tá a maior bagunça aqui, o PCC quer invadir e matar a gente. Chore por eu (sic), porque eu posso não chegar em casa vivo'”, narra Eliene.
Investigação
A Polícia Civil do Rio Grande do Norte investiga como começou o massacre, e como os presos do Pavilhão 5 - presídio Rogério Coutinho Madruga, - conseguiram chegar até o Pavilhão 4. Para as famílias, o Estado já sabia do conflito iminente e não o impediu. “Com certeza o governo é responsável. Lá era para ter segurança. Meu filho não foi vivo para lá? Era para ter voltado vivo. E o governo era para ter garantido. Ele não tinha nada a ver com as brigas lá. Ele não tava preso? Eles tavam tudo solto lá, igual que fosse no meio da rua. As celas de lá não tinham portão, nada. Não era para ser tudo dentro das grades, fechadinho? E o total de presos era muito grande lá”, argumenta a dona de casa de Santa Cruz.
"Que órgão eu procuro, a senhora sabe?" - perguntou a dona de casa à repórter. Sem saber quais são seus direitos, mas decidida a lutar por eles, Eliene tentará ser indenizada. “Foi um filho que eu perdi. Meu filho. É um pedaço de mim meu filho. Tenho que ter direitos”. (Agência Brasil)